ANSELMO, Sto. Por que Deus se fez homem? São Paulo: Novo Século, 2003. 171 p.
1. Sobre o autor
Anselmo nasceu em Aosta, Itália, em 1033. Seu pai era proprietário de terras, o que significava que, nessa época, sua família era rica e tinha poder social. Segundo informações, “foi educado nas melhores escolas de gramática e de dialética no norte da França”[1].
Em 1060 entrou para o mosteiro de Le Bec, na Normandia, norte da França, onde iniciou sua carreira teológica sob a supervisão do abade Lanfranc. Anselmo serviu como “prior (1063-78) e abade (1078-93) em Bec antes de concordar, com relutância, em suceder Lanfranc como Arcebispo de Cantuária [ou Canterbury] (1093-1109)”[2].
Por causa de suas diferenças com o rei Guilherme sobre o direito dos monarcas de nomear clérigos, Anselmo abandonou sua sede episcopal em 1907 [sic] e partiu em exílio voluntário. […] em 1106, suas diferenças com o rei foram resolvidas, Anselmo regressou para Canterbury, onde assumiu o seu arcebispado até a sua morte em 1109[3].
Foi logo depois do seu período de exílio que Anselmo escreveu o “Cur Deus homo?”, em Cantuária (1099-1100), uma de suas mais famosas obras.
O restante delas, cerca de “doze tratados teológicos, dezenove orações e três meditações, juntamente com muitas das suas cartas (375 ao todo)”[4], muitas escritas durante sua estada em Bec, se mostram a seguir:
- Monologion sobre a base lógica da fé (1076/77): onde defende que é possível provar racionalmente a existência de um absoluto que está em toda a parte todo tempo, acima tanto do tempo quanto do espaço. Este absoluto, para ele, é Deus.
- Proslogion (A fé que procura o entendimento): onde procura demonstrar a existência de Deus usando somente a razão, a lógica e o raciocínio humano;
- Epistola de incarnatione Verbi;
- Gramático;
- Sobre a verdade;
- Sobre a liberdade;
- Líber apologeticus contra Gaunilonem;
- Líber pro insipiente;
- De concórdia;
- Sobre as quatorze alegrias celestiais.
Anselmo morreu no dia 21 de abril de 1109, numa quarta-feira de Semana Santa, com 76 anos. Foi canonizado em 1163 e em 1720 foi declarado oficialmente um Doutor da Igreja.
2. O contexto político-social-religioso no tempo de Anselmo
- Época do florescimento do aristotelismo na Europa. Antes era o pensamento neo-platônico de Dionísio Pseudo-Areopagita e João Escoto Eirígena;
- Cisma de 1054 entre a Igreja Romana (ocidente) e a Igreja Grega (oriente);
- Início do Escolasticismo;
Anselmo iniciou uma era teológica que continuaria por vários séculos, cujo ápice seria a escolástica do séc. XIII. Na sua época, a teologia era principalmente produto dos mosteiros. Com o começo da teologia escolástica iniciada por Anselmo, o estudo e desenvolvimento da teologia mudaram e começaram a ser feitos nas escolas e universidades que logo surgiram […] em conexão com as grandes catedrais da Europa, sobretudo em Paris. A teologia escolástica se caracteriza pelo uso da razão para obter uma compreensão da fé cristã [fides quaerens intellectum][5].
- Época de dominação política da Inglaterra pelos normandos (Guilherme, o Conquistador; Guilherme II; Henrique I).
3. Sobre a obra “Por que Deus se fez homem?”
O livro é dividido em duas partes que contém o diálogo real ou imaginário de Anselmo com um outro monge chamado Bozo (ou Boson[6]). O método dialético fica evidente no texto.
De acordo com John van Engen:
Usando um método dialético de perguntas e respostas, procura solução a problemas nas doutrinas cristãs que poderiam ser mal interpretadas por hereges para, em seguida, negá-las. Este método está evidente no desenvolvimento de seus argumentos, os quais se compõem de uma série de perguntas seguidas de respostas que progridem até chegar à conclusão final do argumento[7].
A obra trata discute a cristologia dentro do contexto medieval de relação entre a fé e a razão e a intenção de Anselmo é demonstrar a racionalidade da encarnação e da obra expiatória de Cristo. De acordo com Bernard Sesboüé:
Anselmo dialoga com irmãos que não precisam “chegar à fé pela razão”, mas querem se alegrar no entendimento e contemplação da beleza daquilo que crêem, sempre dispostos a justificar sua esperança.
O essencial nos esforços de Anselmo, que, aliás, teve influência limitada no seu tempo, é o cuidado por justificar a fé pela razão, propondo, portanto, uma relação nova entre ambas.. com isso, visava não só os confrades, mas também os infiéis ou não-crentes, pois os fieis sempre interiorizam como questão intrínseca à fé aquilo que os não-crentes objetam do exterior, como obstáculo a ela. Uns insistem nas razoes porque crêem; outros, nas razoes por que não crêem. Todos, porém, estão envolvidos na mesma busca racional[8].
3.1. Livro 1
Dividido em 25 capítulos, contém “as objeções dos infiéis, aqueles que desprezam a fé cristã contrária à razão; e também a resposta dos fiéis. Também se demonstra com argumentos peremptórios e independentes da revelação que ninguém pode se salvar sem Jesus Cristo”[9].
Anselmo pretende demonstrar a importância de se saber dar razão da fé cristã. Como diz Bozo, no final do Livro 1: “Não pretendo que dissipes todas as minhas dúvidas, mas que me mostres a razão de minhas convicções”.[10]
Para dar razão da própria fé, Anselmo e Bozo usam as argumentações e “as palavras dos infiéis, pois é conveniente que, ao tentarmos estudar a razão da nossa fé, coloquemos à frente as objeções daqueles que de nenhum modo querem abraçar a nossa fé sem razões”[11].
Se os infiéis caluniam a encarnação, Anselmo a defende. Se aqueles defendem a não realidade da representatividade no pecado, numa mulher, Anselmo a defende e justifica com a necessidade da encarnação por meio de uma mulher. Para ele, a redenção do homem não poderia acontecer a não ser por meio de um homem que também fosse divino e que liberta os pecadores da ira, do inferno, do demônio e lhes concede a bem-aventurança.
Anselmo trata da humanidade/divindade de Cristo, de sua obediência à vontade do Pai. Explica o que, de fato, é o pecado e o que ele significou para a humanidade e que o homem não pode ser salvo sem que seja feita expiação pelos pecados e que somente Jesus Cristo pôde fazer essa expiação, visto que “a satisfação deve ser proporcional ao pecado, e que o homem não pode proporcioná-la por si mesmo”[12]. Assim, conclui “que necessariamente o homem se salva por Cristo”[13].
No meio de sua argumentação, Anselmo, levado por Bozo, discute vários aspectos relacionados à angelologia, à antropologia e à soteriologia (capítulos XVI-XVIII).
3.2. Livro 2
Dividido em 22 capítulos, tenta-se comprovar que
a natureza humana foi criada para desfrutar algum dia em corpo e alma a bem-aventurança eterna; e que era necessário que este desígnio para o qual o homem foi feito fosse cumprido; mas que isto não pôde ser cumprido sem Deus ter-se tornado homem, e, portanto, que tudo que a fé nos ensina em relação a Cristo é algo necessário[14].
Toda a argumentação do Livro 2 se dá a partir do pedido de Bozo a Anselmo, no fim do Livro 1: “Agora, quero que me faças compreender a necessidade de tudo aquilo que a fé católica nos manda crer acerca de Cristo, , se quisermos nos salvar, e como isto é necessário para nos salvar, e como Deus, em sua misericórdia, salva o homem”[15].
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Anselmo trata das três premissas básicas que já havia tratado no Livro anterior: 1) a pecaminosidade humana (capítulos I-V), 2) a encarnação de Cristo (capítulos VII-XIII, XVI-XXI) e 3) a necessidade de uma satisfação pelos pecados dos homens por Jesus Cristo (capítulos VI, XIV-XV).
São interessantes o primeiro capítulo (Livro 1) e o último capítulo (Livro 2). No primeiro, Anselmo se distancia das Escrituras e quer comprovar simplesmente por meio dos argumentos racionais tudo o que diz. É o que faz durante todo o texto. Mas, no último capítulo, Bozo (Anselmo?) diz: “Tudo o que me disseste parece-me muito razoável e impossível de contradizer, e pela solução de uma questão que propusemos, vejo bem provado e verdadeiro o que se encontra contido no Novo e no Antigo Testamento”[16].
4. Conclusão
1. Anselmo não foi um tomista, isso sugeriria um anacronismo, visto que Santo Tomás de Aquino é mais de um século posterior a Anselmo.
2. As argumentações de Anselmo servem para exemplificar a fé em busca de suas razões/compreensões. O contrário, ou seja, a utilização de recursos puramente racionais para se chegar à compreensão da fé, seria falacioso e, talvez, com isso, todo o projeto teológico escolástico aristotélico cairia.
3. A obra de Anselmo influenciou todo o restante do pensamento soteriológico subseqüente, principalmente o protestante, no que diz respeito ao caráter substitutivo da morte de Jesus Cristo, o que torna seu livro um dos mais influentes na história do pensamento teológico cristão.
4. Escapando das idéias de sua época, Anselmo tira o Diabo da discussão sobre a salvação e argumenta somente numa linha “intra-trinitária”, entre o Pai e o Filho. E o Espírito Santo?
[1] ENGEN, J. van. Anselmo de Cantuária. In: ELWELL, W. A.
Enciclopédia histórico-teológica da Igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 78.
[2] Ibidem (Grifo do autor).
[3] PEDRAJA, L. G. Anselmo de Cantuária. In: GONZÁLEZ, J. L. Dicionário ilustrado dos intérpretes da fé. São Paulo: Academia Cristã, 2005. p. 48. Onde se lê “1907”, leia-se “1097”.
[4] ENGEN, J. van. Op. cit., ibidem. Ricardo Q. Gouvêa admite que ainda restam cerca de 475 cartas, não apenas 375.
[5] PEDRAJA, L. G. Op. cit., p. 49 (Grifos do autor).
[6] Cf. SESBOÜÉ, B. A palavra da salvação (séculos XVIII – XX). São Paulo: Loyola, 2006. p. 78.
[7] PEDRAJA, L. G. Op. cit., p. 48 (Grifos do autor).
[8] SESBOÜÉ, B. Op. cit., p. 78.
[9] ANSELMO, Sto. Por que Deus se fez homem? São Paulo: Novo Século, 2003. p. 11.
[10] Ibidem, p. 92.
[11] Ibidem, p. 19.
[12] Ibidem, p. 77.
[13] Ibidem, p. 91
[14] Ibidem, p 11.
[15] Ibidem, p. 92.
[16] Ibidem, p. 157.